Uma história do lobby sionista na Inglaterra e nos EUA
O lobby está fadado a fracassar porque os israelenses já decidiram que não se importam com a opinião ocidental
Foi publicado no final de 2024 o volumoso Lobbying for Zionism on Both Sides of the Atlantic (algo como O lobby sionista nos dois lados do Atlântico), do historiador israelense Ilan Pappé. Ele redigiu uma história do lobby e fixou o seu início na Inglaterra do século XIX; mais em específico, na pessoa de Anthony Ashley-Cooper (1801 – 1885), sétimo Conde de Shaftesbury. O outro lado do Atlântico aludido no título é, naturalmente, os EUA, e a história chega até o presente.
Ao longo dos séculos, tanto a coroa britânica quanto o governo dos EUA comportaram tendências favoráveis e opostas ao lobby. As tendências opostas pretendiam colocar algum monarca árabe como aliado preferencial e manter o Oriente Médio em paz, sem as imensas perturbações dos sionistas. Durante a Guerra Fria, essas tensões internas foram bem drásticas, pois fazer do “Mundo Livre” um apoiador incondicional de Israel era empurrar os árabes, com todo o seu petróleo, para o lado dos soviéticos.
Como o livro é abrangente, escolhi alguns pontos para destacar, e que sejam propriamente da história do lobby.
As origens
Como a ideia de que os judeus devam retornar à Terra Santa é encontradiça entre puritanos (Pappé mostra que até o presidente John Adams acreditava nisso), a escolha pelo sétimo Conde de Shaftesbury se deve ao fato de ele ter trabalhado, no seio do Império Britânico, em prol da criação de “um Estado britânico e judaico no meio do Império Otomano, a Palestina” (p. 4). No século XIX, o Império Otomano estava firme e forte. De certa forma, então, o lobby sionista começou como um lobby britânico contra a integridade do Império Otomano.
Em 1838, sob pressão de Shaftesbury e já com esse propósito, foi aberto na Palestina otomana o primeiro consulado britânico. Para Shafstesbury, “os dias do Império Otomano estavam contados, e a corrida pelo seu espólio já havia começado” (p. 6). Tanto o conde quanto o primeiro cônsul estavam envolvidos antes em projetos religiosos, que visavam à interpretação da Bíblia e à conversão dos judeus.
Além da questão religiosa e da questão geopolítica, havia a questão migratória. No século XIX a Europa ocidental não sabia o que fazer com a multidão de judeus orientais que fugiam de pogrons no Império Russo. Por isso, além dos propósitos escatológicos e geopolíticos, a criação de um Estado judaico serviria de local de desova para resolver o problema migratório da Europa. Além disso, no século XIX ocorria o despontar do racismo científico, de modo que essa preocupação era motivada pelo antissemitismo.
Os EUA também tiveram um lobby primitivo no século XIX promovido por puritanos. O resultado mais digno de nota é esses puritanos terem formado Cyrus Scofield, o autor da Bíblia Scofield. O fiel que estuda essa edição da Bíblia encontra muitas notas explicativas no Velho Testamento, e aprende que a Bíblia é uma espécie de escritura imobiliária, na qual a área do antigo Reino de Israel é propriedade dos judeus per omnia saecula saeculorum, e cumpre aos cristãos apoiar o povo eleito quando ele explode as casas dos gentios que moram lá.
Os judeus pobres e a fase esquerdista
Normalmente, a histórias do sionismo começam com Herzl e a publicação de Der Judenstaat em 1896. Nessa altura, muita água já tinha rolado entre os puritanos. E, quando Herzl entra em cena, ele não consegue cativar as elites judaicas inglesas. Estas consideravam que a criação de um Estado judaico faria com que a sua lealdade à Inglaterra fosse questionada, e percebia nisso um mau negócio.
Por outro lado, os judeus pobres amontoados nas periferias de Londres viram no sionismo a chance de mudar de vida. Nessa época, o socialismo e o comunismo se espalhavam entre os pobres urbanos da Europa. O sionismo, então, abandonou o vocabulário colonialista e capitalista de Herzl (que redigiu Der Judenstaat para convencer um banqueiro judeu a investir na novidade) e ou a se apresentar como o socialismo dos judeus. Assim, o movimento Poale Zion, trabalhista, se tornou uma febre entre os judeus pobres a Inglaterra, e cresceria muito dentro do Labour Party no século XX. Como a esquerda inglesa é de formação puritana, juntar o socialismo judaico com o trabalhismo cristão puritano foi juntar a fome com a vontade de comer. Só na segunda metade do século XX a maior visibilidade dos crimes de Israel aproximaria o Labour da causa palestina. Quem teve destaque nessa movimentação foi George Galloway, um escocês descendente de irlandeses e, por isso, católico.
Além disso, tanto na Europa como nas Américas, era bem difundida a ideia de que o bolchevismo era uma conspiração judaica, de modo que todo judeu fosse suspeito de comunismo. Era pesado, para um judeu, assumir-se comunista, então o sionismo era o esquerdismo politicamente correto.
A tomada dos EUA pelo lobby israelense
Uma das questões que mais intrigam os observadores da questão é: Israel é uma extensão do poderio norte-americano no Oriente Médio, ou é um Estado vampiro que usa os recursos dos EUA para manter o seu próprio projeto? O livro de Pappé aponta para a segunda resposta, embora deixe claro que os neocons (que consideram Israel um posto avançado da sua civilização) têm sua própria agenda.
A tomada dos EUA pelo lobby deveria levar os teóricos políticos a refletir sobre as falhas da democracia. Na década de 1950, existiam os “três I” da política identitária: italianos, irlandeses e Israel. As três comunidades oriundas de religiões minoritárias (catolicismo e judaísmo) elegiam seus representantes com base na sua identidade italiana, irlandesa ou judaica. Um caso exemplar era o do parlamentar Fiorello La Guardia, filho de italiano com judia húngara (o que faz dele judeu segundo a halachá), fluente em italiano e iídiche. Assim, reivindicando duas identidades, ele conseguia sucesso eleitoral açambarcando os votos das comunidades italiana e judaica. Os judeus americanos eram grandes entusiastas de Israel; e, mesmo que não tivessem a menor intenção de se mudar para lá, cobravam dos seus parlamentares medidas favoráveis ao Estado estrangeiro. Além disso, a formação puritana dos EUA fez com que houvesse uma simpatia generalizada pela ideia de mandar os judeus “de volta” para a Terra Santa.

Der Judenstaat/Wikicommons
Como a maioria dos judeus era de esquerda, era senso comum que os Democratas tinham de ser favoráveis a Israel, pois dependiam do voto judaico. (Embora Kennedy tenha frustrado essas expectativas.) O partido com maior capacidade de enfrentar o lobby seria, em princípio, o dos Republicanos.
Ainda assim, a oposição ao lobby estava concentrada, desde a época da partilha da Palestina, nos burocratas do Departamento de Estado. Eram eles que queriam fazer alianças com monarquias árabes, deixar a região estável e impedir que o mundo árabe se aproximasse da União Soviética. No entanto, parar de mimar Israel era algo difícil na democracia por dois motivos: a já citada afeição puritana por Israel e a atuação do lobby no financiamento de campanha.
O jogo começa a mudar dentro da burocracia quando Nixon contrata o diabólico Henry Kissinger como conselheiro. Sob sua influência, os arabistas do Departamento de Estado vão sendo substituídos por gente pró-Israel. Além disso, também a partir do governo Nixon, a filosofia política de Hans Morgenthau, segundo a qual os Estados não devem ligar para a moralidade nas relações internacionais, se tornou a atitude institucional dos EUA.
Henry Kissinger e Hans Morgenthau eram dois judeus alemães sionistas que foram para os EUA na condição de refugiados. Morgenthau foi também conselheiro de Ben Gurion durante a limpeza étnica de 1948. O realista Morgenthau fez escola e teve como sucessor o neo-realista Kenneth Waltz. Sobre este último, Pappé comenta: “Sua obra constitui a infraestrutura ideológica da maioria dos estudos dos centros de pesquisas sobre relações internacionais nos EUA. Desses centros saem graduados os diplomatas estadunidenses que são selecionados para conduzir o processo de paz no Oriente Médio, guiados para relevar questões de justiça e moralidade no processo e correr os menores riscos possíveis. Isso foi muito conveniente para Israel e prejudicou bastante os palestinos” (p. 325).
Fundindo os grandes atores pró-Israel nos EUA, Pappé fala de uma macabra trindade (unholy trinity): “sionismo cristão, neoconservadorismo e lobby judeu americano” (p. 362). Os neocons são uma escola de pensamento que notoriamente tem muitos judeus ex-trotskistas, mas vale ressaltar que não é uma exclusividade (nem Fukuyama nem Huntington são judeus).
Quanto ao lobby, a AIPAC ocupa muitas e muitas páginas do livro. Essa é a organização lobista mais famosa dos EUA e sua atuação mais notória é a de financiar campanhas dos políticos em início de carreira. A AIPAC foi fundada na década de 1950 a partir de organizações pré-existentes e pretendia ser bipartidária. Ela pega o dinheiro dos doadores dos EUA, manda para Israel e Israel decide como gastar. (Não vou tratar dos pormenores da AIPAC aqui, mas fica a recomendação do documentário The Lobby produzido pela Al-Jazeera, que é uma fonte de Pappé no livro.) Da macabra trindade, falta só vermos os sionistas cristãos.
A radicalização e os tele-evangelistas
Na década de 1980, após uma longa hegemonia de esquerda socialista e trabalhista, chega ao poder em Israel uma coalizão de direita, religiosa e nacionalista. Os judeus norte-americanos, sendo em sua maioria esquerdistas, começaram a se distanciar do governo israelense. Como a AIPAC trabalha segundo os interesses do governo israelense, e não do eleitorado judeu norte-americano, a AIPAC deixou de ser bipartidária e ou a ser de direita. Assim, em vez de focar na população judaica para mobilizar a opinião pública norte-americana em favor de Israel, o lobby preferiu focar cada vez mais nos cristãos fundamentalistas sionistas. Tal estratégia foi lançada por Menachem Begin e seu partido Likud em 1977, e quem teve a ideia foi o jovem Benjamin Netanyahu, que acabava de voltar dos EUA.
Durante a Era Reagan, surgiram os tele-evangelistas, e ao mesmo tempo a política externa era pensada em termos religiosos maniqueístas (o Ocidente cristão combatia o grande Satã em Moscou etc). Nesse contexto, os tele-evangelistas tomaram a liderança da propaganda sionista, dizendo que estar contra Israel era estar contra Deus. Entre 1981 e 1989, diz Pappé, “Netanyahu integrou os fundamentalistas cristãos à Hasbará (propaganda) israelense” (p 311). Talvez a maior prova dessa integração seja o fato de que, no Líbano ocupado (1982 – 2000) Israel liberou a abertura de uma TV cristã sionista que transmitia tele-evangelistas. Possivelmente miravam nos maronitas…
Lobby condenado
Além de contar a história do lobby, Pappé aponta um enigma: por que, décadas após o reconhecimento internacional do Estado de Israel, o lobby sionista repete incansavelmente que o Estado de Israel é legítimo? Tanto no prefácio como na conclusão ele levanta suas conjecturas. Ele presume que a propaganda seja, em princípio, um problema de consciência: os judeus sionistas sabem que Israel é ilegítimo, e por isso mentem sem parar.
Mas há um problema mais grave: Israel faz o que quer, e não se importa mais com a opinião pública. Qual o sentido de gastar tanto dinheiro para reprimir a fala de estudantes nos campi norte-americanos, se a opinião de tais estudantes é irrelevante? Para Pappé, o lobby ganhou vida própria, e o poder inebria. Por que um lobista iria abandonar a ascendência que tem sobre políticos de direita e esquerda nos dois lados do Atlântico?
Não obstante, o lobby está fadado a fracassar porque os israelenses já decidiram que não se importam com a opinião ocidental. Assim, em seus estertores o lobby vai ficar cada vez mais feroz, querendo ocultar a realidade e manter o poder.
(*) Artigo publicado originalmente em Strategic Culture
(**) Bruna Frascolla é historiadora da filosofia, doutora pela UFBA, e ensaísta
