Banco de trabalhadoras na Índia reúne milhares de acionistas: 'ninguém fica para trás'
Mirai Chatterjee, ex-secretária geral da Associação de Mulheres Autônomas (SEWA), conta a experiência da primeira instituição bancária só de mulheres do mundo
Um banco exclusivo para mulheres que não são apenas correntistas, mas acionistas com participação nos lucros, além de um sindicato voltado a mais de 3,2 milhões de trabalhadoras informais. Essa é a realidade de milhares de indianas criada pela Associação de Mulheres Autônomas (SEWA).
“Quando as mulheres lideram, ninguém fica para trás”, afirmou a Opera Mundi Mirai Chatterjee, diretora de um dos braços da entidade em Gujarat, região no qual comanda uma federação cooperativa com mais de 300 mil mulheres.
Sua história na entidade começa em 1984, após um convite da advogada trabalhista Elaben Bhatt, que ela sucederia no comando da SEWA nos final dos anos 1990.
“O Banco SEWA é uma cooperativa onde as correntistas são também acionistas. Só mulheres podem abrir uma conta bancária para poupar e obter empréstimos para os seus negócios. Quando o banco tem lucro, ou excedente, na linguagem cooperativa, elas recebem os dividendos de suas ações”, disse a atual diretora.
Hoje, Chatterjee também atua como diretora de Previdência Social da SEWA, sendo responsável por programas de saúde, cuidados infantis e de seguros voltados às trabalhadoras informais. Durante o 1º. Fórum de Economia da Asett, no País Basco, ela contou sobre a transformação que a entidade vem operando na vida de milhões de indianas.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Mirai Chatterjee:
Opera Mundi: Mirai, como começa a SEWA?
Mirai Chatterjee: a SEWA é um sindicato nacional composto exclusivamente por mulheres indianas. Nós reunimos 3,2 milhões de trabalhadoras da economia informal e temos presença em 18 estados da Índia.
Nossa associação começou em 1972. Ela vem da experiência da ala feminina da Textile Labour Association (TLA), fundado em 1918, ainda durante a colonização britânica, pelo Mahatma Gandhi e por uma grande mulher, a Anusyabehn Sarabhai, que era de uma família milionária do setor têxtil.
Ao chegar em Londres, para estudar medicina, ela se envolveu com o movimento sufragista, que era também feminista e trabalhista, e foi estudar na London School of Economics. Ao retornar à Índia, ou a organizar os trabalhadores da fábrica têxtil do seu irmão. Mas, como era difícil, ela pediu a ajuda a Gandhi e os dois formaram um dos primeiros sindicatos da Índia.
Anusyabehn foi a mentora de Ela Bhatt, a fundadora da SEWA. Bhatt era uma advogada trabalhista que se sensibilizou frente à precariedade das mulheres indianas submetidas à informalidade. A SEWA surge, portanto, dessa tradição.
O foco são mulheres trabalhadoras informais?
Sim. Na Índia, a maioria dos trabalhadores são informais. Eles não têm um empregador, nem direito à voz ou à visibilidade, o caso das mulheres é ainda mais dramático. Ao tentar organizá-las em torno de uma rede de solidariedade, Bhatt percebeu que o maior gargalo era o emprego. Elas não queriam caridade, queriam trabalho. Foi aí que surgiu a ideia das cooperativas.
Então, elas procuraram um banco para abrir uma conta, mas os funcionários negaram. “Vocês são pobres, não poupam, vão pedir empréstimos, pegar o dinheiro e vão embora”, disseram. Diante disso, elas resolveram montar o seu próprio banco.
A nossa primeira cooperativa foi o Banco SEWA que começa em 1974, com a união de 4 mil mulheres, cada uma contribuindo com 10 rúpias (R$ 0,65) e com um capital social de 40 mil rúpias (R$ 2.611,47). Hoje, temos mais de meio milhão de depositantes e um total de 6 bilhões de rúpias indianas (R$ 391,6 milhões). É o primeiro banco de mulheres do mundo.
Sempre que tentávamos entrar no mercado convencional, eles diziam que éramos “um risco”. “Vocês estão sempre adoecendo, morrem no parto”, esse tipo de coisa. De certa forma, isso foi uma bênção, porque tivemos que desenvolver o nosso próprio sistema. O governo acabou apoiando a ideia. Havia um movimento nos anos 1970 de nacionalização dos bancos e uma política para que os mais pobres tomassem empréstimos com juros mais baixos.

Sandra Blaser/ World Economic Forum
Como funciona esse banco?
É uma cooperativa onde as correntistas são também acionistas. Só mulheres podem abrir uma conta bancária para poupar e obter empréstimos para os seus negócios. Quando o banco tem lucro, ou excedente, na linguagem cooperativa, elas recebem os dividendos de suas ações.
Há também uma pensão do governo e nós demos início a um projeto de seguro financeiro, pequeno, no qual são oferecidos créditos por meio de empréstimos. Os membros do Conselho de istração, que define as políticas do banco, são eleitos por todas, regularmente.
Vocês mexem no cerne que é nossa liberdade financeira.
Sim, e a família toda se beneficia. A mulher ter sua própria conta bancária, sua própria fonte de rendimento, uma apólice de seguro em seu nome faz com que toda a família seja assegurada. E ela ganha um novo status na família, na comunidade, na aldeia.
Quando começamos, muitas mulheres não sabiam ler nem escrever. Por isso, adotamos um sistema de fotografias e de impressão digital vinculados à conta bancária, para que elas pudessem se identificar. O governo indiano acabou incorporando essa ideia. Também desenvolvemos um micro seguro de saúde para mulheres, que é um prêmio pequeno, mas que ajuda. E, agora, o governo criou um seguro nacional de saúde.
Eu tenho formação em Saúde Pública e, hoje, atuo com saúde e cuidados infantis na SEWA, garantindo esses seguros. Conforme a cooperativa foi crescendo, nós amos a investir nesse tipo de atenção e o resultado foi que o dinheiro das nossas associadas duplicou. Com as crianças nas creches o dia inteiro, recebendo boa alimentação e educação, elas puderam trabalhar. É o que dizemos aos governos: “vocês devem ter cuidados infantis universais para que as mulheres possam trabalhar”.
Em relação à liderança dessas mulheres, o que você vê de diferente?
Quando as mulheres lideram, algo especial acontece, porque elas tendem a ser mais inclusivas. As mulheres não deixam ninguém para trás. Talvez, porque nunca tiveram oportunidades. Em países muito patriarcais, como a Índia, onde as mulheres não têm voz, não têm representação, quando chega uma oportunidade, elas aproveitam e avançam.
A parte mais difícil é tirá-las de casa devido à estrutura patriarcal. A mobilidade de muitas ainda é restrita. Além disso, elas trabalham 24 horas por dia. O nosso primeiro o foi organizá-las, o que significa construir uma irmandade de solidariedade entre elas. Uma vez conquistada a confiança, é possível construir cooperativas, sindicatos e outras formas coletivas de organização onde elas am a ter voz, visibilidade e representação.
Quando as mulheres se unem, elas se tornam fortes. Caso contrário, ninguém irá reconhecê-las. Coletivamente, o seu poder de negociação aumenta diante do mercado, do governo, do mundo exterior. O governo indiano aprova o movimento porque ele a a ter com quem falar. Existem programas, por exemplo, de combate à pobreza que não chegariam nos lugares mais distantes sem a nossa ajuda.
Como vocês fazem essa informação chegar na base?
Nós identificamos as líderes locais, que chamamos de “gavin”. São as que assumem a liderança e colocam os outros em primeiro lugar, antes de si mesmas. Elas estão em todas as aldeias e nos bairros urbanos. Nós as treinamos em liderança e outras habilidades para que elas forneçam as informações e organizem as mulheres em uma rede fraterna de solidariedade.
Elas são a nossa principal força porque têm credibilidade no território. São pessoas confiáveis, que estão 24 horas por dia, sete dias por semana nos bairros. Sem elas, nós não conseguiríamos ampliar o nosso alcance, porque uma coisa é alguém de fora dizer, outra é alguém respeitada localmente.
Elas também são democraticamente eleitas para os conselhos das cooperativas e dos sindicados. Em geral, nossas instâncias decisórias são compostas de 15% a 20% por mulheres que foram às universidades e de 75% a 80% pelas próprias trabalhadoras informais.
Isso gera uma maior confiança, porque as pessoas veem suas comunidades nestes postos. Nós temos toda convicção de que são as trabalhadoras que devem liderar esse processo. Esse é um valor da tradição gandhiana.
Com isso, nosso movimento se espalhou por toda a Índia e pelos países vizinhos do sul da Ásia, Nepal Bangladesh, Paquistão. Nós temos uma rede internacional, a Women in Informal Employment: Globalozing and Organizing (WIEGO) que está presente em todos os continentes, inclusive no Brasil, junto às cooperativas das catadoras de resíduos sólidos.
Qual a diferença de uma cooperativa para outra empresa?
Nosso movimento é baseado em valores muito parecidos com os da Mondragon que através de empresas locais e cooperativas busca fortalecer as pessoas, levando-as à autossuficiência econômica. Para nós, os mais pobres e mais vulneráveis estão no centro. Esse era o valor de Gandhi, a não violência, o emprego local pacífico.
É outro modo de pensar. Em países como o Brasil e a Índia, que são grandes e diversificados, é preciso construir primeiro as estruturas econômicas locais e, a partir daí ir para os níveis estadual, regional, nacional e depois global. É de baixo para cima, não o contrário.
Claro que precisamos de boas políticas de governos, como vocês têm com o presidente Lula, mas a maneira efetiva de diminuir a desigualdade é através das cooperativas que mostram o caminho para impulsionarmos a economia local, onde todos lutam em conjunto na resolução de desafios, beneficiando-se coletivamente desse processo.
Nós também apostamos muito nas lideranças jovens. Eu era estudante nos Estados Unidos, estava interessada no movimento trabalhista e no movimento feminista, quando Ela Bhatt que me disse, ‘precisamos de mulheres jovens como você para se juntar ao nosso movimento’.
Quando ela se aposentou, eu me tornei secretária-geral por algum tempo. Agora temos outras lideranças jovens no comando. Nós precisamos promover as jovens para dar continuidade ao que fazemos.
