O apagamento eurocêntrico como corruptela
Pensamento ocidental aplicou corruptela do damnatio memoriae egípcio, promovendo apagamento contra povos considerados “bárbaros”
Onde a vida após a morte era tudo, ser esquecido era a condenação final. Os egípcios acreditavam que, enquanto o nome de uma pessoa fosse lembrado, sua alma poderia viver. Se alguém quisesse realmente destruir seu inimigo, não esculpiria nem seu nome e nem sua imagem, apagando sua existência para sempre.
No Egito Antigo, o damnatio memoriae (termo em latim) era uma punição severa que visava eliminar qualquer vestígio de uma pessoa da memória coletiva. Um exemplo notório é o do faraó Akhenaton, que promoveu o culto exclusivo ao deus Aton, desafiando o tradicional politeísmo egípcio. Após sua morte, seus sucessores, como Horemheb, ordenaram a destruição de suas imagens e a remoção do seu nome de registros oficiais, tentando erradicar sua memória da história egípcia.

(Foto: Reprodução / HBO / Extermine Todos os Brutos)
A prática do damnatio memoriae no Egito Antigo, que consistia em apagar sistematicamente da história a existência de indivíduos considerados indesejáveis, encontra eco na forma como o colonialismo europeu e o pensamento eurocêntrico trataram as contribuições africanas à filosofia ocidental. Essa comparação revela estratégias similares, porém essencialmente diferentes, de apagamento e silenciamento histórico.
No século XIX, o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel perpetuou uma visão depreciativa da África em sua obra “Filosofia da História”. Ele descreveu a África como “sem história” e “sem movimento ou desenvolvimento”, negando-lhe um papel significativo na evolução da humanidade. Essa perspectiva influenciou gerações de pensadores e justificou, em parte, a marginalização das contribuições africanas ao pensamento filosófico global.
Contrariando a narrativa eurocêntrica, há evidências de que filósofos gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles estudaram no Egito, absorvendo conhecimentos das escolas de mistérios africanas. Essas instituições eram centros de saber que abordavam temas como ética, metafísica e cosmologia. No entanto, a historiografia ocidental frequentemente omite ou minimiza essas influências, atribuindo exclusivamente aos gregos a origem da filosofia ocidental.
“Extermine Todos os Brutos”: uma revisão histórica necessária
A série documental “Extermine Todos os Brutos“, dirigida por Raoul Peck e disponível na HBO Max, oferece uma análise crítica do colonialismo e do racismo estrutural. Baseada em obras como “Exterminate All the Brutes” de Sven Lindqvist, a série expõe as atrocidades cometidas durante a colonização e como elas foram sistematicamente apagadas ou distorcidas na narrativa histórica dominante. Peck utiliza uma combinação de dramatizações, animações e imagens de arquivo para revelar as camadas de silenciamento e manipulação presentes na construção da história ocidental.
A prática do damnatio memoriae no Egito Antigo e o apagamento das contribuições africanas à filosofia ocidental refletem estratégias semelhantes de silenciamento e controle da memória coletiva. No entanto, enquanto a primeira representava um ato cultural e religiosamente circunscrito dentro de uma cosmovisão egípcia, o segundo foi realizado consistentemente pela racionalidade ocidental que se acreditava superior a qualquer africano, ou a outros povos considerados selvagens ou bárbaros; visão que influenciou o desenvolvimento de uma ciência especializada na destruição de todos aqueles considerados inferiores.
Revisitar e reconhecer essas práticas é essencial para entendermos as estratégias coloniais antigas e modernas, bem como para buscarmos uma compreensão mais justa e inclusiva da história da humanidade. Obras como “Extermine Todos os Brutos” desempenham um papel crucial nesse processo de reavaliação e conscientização histórica.
