O BRICS frente à ‘estratégia nacional-imperialista de Trump’
O “isolacionismo” trumpista não implica em uma postura menos hostil aos países ou grupos de países que vêm questionando a ordem internacional dita “unipolar”
No dia 23 de maio deste ano, na Academia Naval dos Estados Unidos, o vice-presidente do país, J.D. Vance, afirmou que “a era da dominação ininterrupta dos Estados Unidos chegou ao fim”. Desde a posse de Donald Trump, o mundo assiste ao desmonte de algumas estruturas importantes para a garantia da hegemonia dos EUA, tanto do ponto de vista militar, como a redução de inversões em estruturas como a OTAN, quanto do ponto de vista da ideologia, com a suspensão dos fundos destinados à USAID, braço da hegemonia cultural dos EUA no mundo em desenvolvimento (sempre apresentada como “ajuda americana”), a criação de dificuldades para estudantes estrangeiros permanecerem nas universidades americanas, a suspensão de convênios científicos e culturais, etc. Estaríamos diante de uma istração dos EUA que reconhece o declínio de sua hegemonia e a ascensão de uma ordem internacional mais desconcentrada?
De maneira alguma. O “isolacionismo” trumpista não implica em uma postura menos hostil aos países ou grupos de países que vêm questionando a ordem internacional dita “unipolar”, que eu prefiro chamar de hegemonia dos EUA. Mas sim em um projeto que combina nacionalismo e isolamento com a busca de mecanismos para a ampliação da drenagem dos recursos mundiais e a reorganização da estratégia militar, que precisa responder a objetivos diferentes dos que se tinha antes.

(Foto: White House / Daniel Torok)
A guerra tarifária anunciada – que agora está em como de espera, dada a luta que se trava internamente ao país, envolvendo setores insatisfeitos das classes dominantes que mobilizaram a intervenção do poder judiciário – mostra que a contestação da globalização liberal do trumpismo a por uma agenda de intensificação da apropriação de recursos produzidos externamente, a fim de concentrar riqueza em solo norte-americano. Conforme escreveu em artigo recente John Bellamy Foster, “a estratégia nacional-imperialista de Trump está em plena consonância com as visões reacionárias de seus seguidores do MAGA, que não se opõem ao imperialismo e ao militarismo, mas são veementemente contra o que consideram uma globalização liberal às custas dos EUA, aliada a guerras indecisas contra potências menores, sem despojos visíveis. Em seu primeiro governo, Trump repreendeu os membros de seu Estado-Maior Conjunto, em relação às guerras no Oriente Médio e na Ásia Central, pela falta de despojos obtidos pelos Estados Unidos, perguntando: ‘Where is the fucking oil?’ (‘cadê o petróleo?’”.
Do ponto de vista de Trump e de seu grupo, as guerras se justificam pelo montante que arrecadam. Se não há ganhos, não há necessidade de travá-las e é por essa razão que o conflito na Ucrânia não interessa: a Rússia, do ponto de vista dos Republicanos, é uma potência menor, cuja derrota não traria benefícios tão significativos a ponto de justificar comprometer parte vultuosa do orçamento militar dos EUA. Não se trata, pois, de pacifismo, mas de reorientação dos recursos. Os gastos militares de Trump, aliás, não se reduziram; vêm aumentando significativamente, com investimentos voltados ao desenvolvimento de armamentos e escudos destinados a uma (futura) guerra nuclear “controlada”, ou “de alcance limitado” com o inimigo fundamental: a China. Esse país é o centro da geoestratégia do Partido Republicano. É para a China que estão voltadas as armas da guerra comercial – que Trump deu início em sua primeira istração, como todos vocês devem recordar. E é em relação à China que os estrategistas militares de Trump desenham suas guerras nucleares “controladas”, visando o Mar do Sul e o Estreito de Taiwan, a fim de enredar o “principal inimigo” em uma guerra capaz de desorganizar sua economia e comprometer sua capacidade de atuar globalmente.
A istração Trump também intensificou o apoio ao genocídio na faixa de Gaza e a expansão da guerra de ocupação israelense para o entorno de Israel, chegando ao Líbano e à Síria. Com isso, Trump responde ao poderoso lobby sionista que opera internamente aos EUA, e mantém os vínculos com o principal enclave da política estadunidense no Oriente Médio, Israel. Ao mesmo tempo, a América Latina volta ao centro da política imperial estadunidense, com a intensificação da pressão sobre o México, sobre Cuba, todo o Caribe e América Central, além da Venezuela, com a sustação dos contratos da Chevron com a PDVSA, visando estrangular ainda mais a economia já combalida pelos embargos dos últimos dez anos. Vindo em direção à América do Sul, a política dos EUA já obteve ganhos sobre o Panamá, retomando as bases militares no local para o controle das rotas comerciais e fazendo com que o país suspendesse seus acordos com a China no âmbito da “Nova Rota da Seda”. Os EUA, sob Trump, também vêm investindo em uma política armamentista de “guerra às drogas” para o Equador, além de apoiar e financiar grupos políticos de extrema-direita em todo o continente.
A política de travar uma guerra comercial, colocada como centro da estratégia de reposicionamento econômico dos EUA, está ligada ao fato de que o grupo a que pertencem Vance, Trump e Marco Rubio dentro do partido Republicano considera que a globalização foi danosa para os Estados Unidos, especialmente em razão da manutenção do déficit em seu balanço de pagamentos a fim de sustentar a ordem financeira internacional baseada no dólar. Essa política de endividamento consistente e de grandes déficits comerciais levou à desindustrialização do país. Por algumas décadas as vantagens dos EUA em termos de tecnologia foram lucrativas o suficiente para justificar a manutenção do modelo, mesmo ao custo da desindustrialização: reduzia-se a produção interna, mas os lucros se mantinham e cresciam a partir da cobrança de royalties mundo afora, garantindo a concentração da riqueza na mão dos grandes empresários e financistas estadunidenses. Atualmente, no entanto, essa possibilidade vem se reduzindo, na medida em que as vantagens tecnológicas dos EUA já não são absolutas. Pelo contrário, os EUA vêm perdendo espaço de forma acelerada também no número de registros de inovações pelo mundo. Em razão desse diagnóstico, esse grupo político que agora está no comando defende que os EUA reduzam seus déficits (a política tarifária foi pensada para isso) a fim de retomar sua indústria. Defendem que os EUA se voltem para si mesmos – e nesse caso isso inclui todo o continente, pois consideram que a América Latina é sua extensão natural.
Diante desse cenário, as iniciativas já existentes de reorganização da ordem internacional, representadas pelos novos regionalismos e por articulações multicontinentais como o BRICS, mantêm sua importância e, eu diria, despontam como polos irradiadores de um grande movimento de resistência.
Mesmo antes desse segundo governo Trump, os EUA já vinham atacando sistematicamente os mecanismos de solução pacífica de controvérsias – como a Organização Mundial do Comércio, que eles mesmos ajudaram a construir e desde o primeiro mandato de Trump aram a atacar. A consolidação de uma ordem internacional mais participativa também é importante para a coordenação de ações de combate a epidemias, crimes financeiros transnacionais, dentre outros. E já que eu falei de “iniciativas já existentes de reorganização da ordem internacional”, o agora ao tema da nossa conversa de hoje: os BRICS.
O BRICS é um agrupamento formado por onze países membros: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã. Serve como foro de articulação político-diplomática de países do Sul Global e de cooperação nas mais diversas áreas. São países parceiros do BRICS Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão.
O BRICS nasceu como articulação para exigir uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional, pleito que ganhou forças após a grande crise financeira de 2008/2009. Com o tempo o bloco foi multiplicando suas agendas. Hoje em dia os BRICS são uma grande plataforma de cooperação que abrange acordos em quase todas as áreas: saúde, educação, cultura, soberania digital, ciência e tecnologia, infraestrutura; todos os anos há reuniões ministeriais temáticas que avançam em acordos nesses diversos temas. Há acordos de mobilidade acadêmica dos BRICS, por exemplo, e um fórum de reitores. Há iniciativas importantes e já em andamento para cooperação em saúde, especialmente nas doenças que são típicas do Sul Global, que não recebem a atenção dos laboratórios europeus e estadunidenses.
Um tema que muito se fala em relação aos BRICS é o da “desdolarização”. Sobre isso, é preciso esclarecer que não existe ainda um acordo sobre desdolarização. Os BRICS demandaram a reforma das instituições de Bretton Woods já na época de sua criação. Houve mesmo uma pequena reforma da estrutura do FMI e do Banco Mundial depois desses movimentos de pressão. O que de fato existe entre os países dos BRICS e cada vez cresce mais é o comércio em moedas locais. Recentemente, Rússia e Irã negociaram um mecanismo de comércio em moedas nacionais. O Banco dos BRICS (NDB) empresta dinheiro em moeda local. E isso é muito importante, porque até então não existia uma instituição voltada ao desenvolvimento que emprestasse em moeda local. Empréstimos em dólar encarecem demais para os países que têm moedas menos valorizadas. Isso está crescendo muito e nesse caso se pode sim dizer que crescem iniciativas independentes do dólar. Mas esse ainda é um longo percurso.
Contudo, nem tudo é tão simples. Os países do BRICS são muito diferentes entre si. Temos uma potência industrial do tamanho da China, três potências nucleares (Índia, China e Rússia); dois grandes líderes em tecnologia (Índia e China), e mesmo a Rússia vem crescendo nessa área de desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente fazendo uso dual da tecnologia militar, no qual são muito avançados. Temos também países que são grandes exportadores de alimentos (Brasil e Índia), dois países megadiversos (Brasil e Indonésia), o que reforça a proeminência, agora que a Indonésia entrou, dos debates sobre florestas, biodiversidade e biotecnologia. E países que não são tão grandes, mas têm importância regional, como é o caso da África do Sul, Egito e Etiópia. Não posso deixar de mencionar ainda a força que tem o tema do petróleo e do gás natural no bloco, pensando aqui na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes e na própria Rússia.
Mas todos são países muito desiguais. Em sua maioria, os países BRICS estão diante de desafios imensos de desenvolvimento, em uma época em que o clima muda de maneira catastrófica. É um grande desafio discutir-se desenvolvimento diante da necessidade premente de redução das emissões. Mas os países estão buscando alternativas. A China é o país que mais investe em alternativas energéticas. Creio que haverá ainda muitas dificuldades, especialmente com o aumento do nível de agressividade dos EUA e mesmo da Europa. Mas é difícil prognosticar algo diferente de uma tendência a uma proeminência cada vez maior das nações do Sul Global no cenário internacional.
No entanto, não posso deixar de comentar que o fato de a ordem internacional ter cada vez mais múltiplos polos e não mais um “hegemon” não significa que será imediatamente uma ordem mais justa. Isso ainda está em aberto. Mas é claro que uma coletividade de nações em que mais vozes se colocam e se fazem ouvir torna mais difícil que prospere sempre o interesse do mais forte, como se viu até aqui.
Por fim, uma consideração: é verdade que os EUA já não conseguem ter o controle das instituições multilaterais como tiveram no ado. E é verdade que os BRICS e outras coalizões regionais têm um papel fundamental nisso. Mas os EUA ainda têm muito poder e são ainda muito perigosos. Veja-se o que fizeram usando a OTAN no entorno da Rússia. E veja-se o que podem fazer para desestabilizar países pelo mundo, mesmo aqueles que contam com grande disponibilidade de recursos. A proeminência dos Estados Unidos segue sendo um problema, especialmente para nós latino-americanos, mas não apenas. E a pressão que eles têm conseguido exercer sobre alguns membros dos BRICS já tem tido alguns resultados, veja-se por exemplo a redução do “perfil” emprestada pelo governo brasileiro na sua atual presidência do bloco, ou mesmo a resistência de uma nação como a Índia em se avançar em pautas mais “ousadas” no que tange à criação de alternativas ao dólar. É preciso depositar esperança nesses mecanismos de cooperação e, ao mesmo tempo, ousar resistir às pressões dos Estados Unidos. Do contrário, os avanços que tivemos até aqui poderão ruir.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.
