O grito de guerra do rentismo
Rentismo parece ter chamado a cavalaria por guerra relâmpago para lacrar que gastos e programas sociais são os responsáveis por altos juros, inflação e déficit público
Reunidos primeiro em Nova York, capital do império decadente, depois em São Paulo, capital da Faria Lima – lá com empresários e políticos, Tarcísio de Freitas no centro do palco, aqui com o capital financeiro, Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Itaú, BTG e não sei como e por que também com o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, tão cioso de sua independência, e no mais Wesley Batista, um dos irmãos que comandam a J&F, holding que controla empresas como a JBS. Parece que o capital financeiro rentista chamou a cavalaria e começou uma guerra relâmpago para lacrar que a gastança do governo e os programas sociais são os responsáveis por altos juros, inflação, déficit público e dívida pública.
A Folha de S.Paulo, que não apenas fez a cobertura do evento, mas também um editorial culpando o governo Lula pelos juros excessivos e pelos R$ 1 trilhão que receberam de juros da dívida pública, fez mais: acionou seus articulistas preferidos, Samuel Pessoa e Marcos Lisboa, para reforçar o argumento básico, segundo o qual a culpa é do presidente Lula e do PT, que não têm credibilidade, que há um déficit estrutural e que gastam mais do que arrecadam. O presidente da Febraban, Isaac Sidney, fazendo coro à pressão, chegou a dizer, de maneira desastrosa, que o ajuste fiscal será feito de qualquer maneira. Segundo suas palavras, “se não por bem, terá de ser por mal”.

(Foto: Pix4free)
Para fechar o cerco, o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, que apesar de trazer à cena a renúncia fiscal – de 6,9% do PIB – e reconhecer que o problema do déficit não começou com Lula, bate na tecla do corte de gastos, do Estado “que engorda enquanto o cidadão emagrece” e apresenta a eterna proposta de reforma istrativa, que fecha a equação: o déficit público e a dívida pública seriam produto dos gastos sociais e de pessoal.
Trata-se de uma operação com dois objetivos estratégicos. No curto prazo, encurralar o governo Lula e tirar da agenda a proposta de reforma tributária progressiva e o debate público sobre a concentração de renda e sobre os absurdos e inaceitáveis juros responsáveis pelo crescimento da dívida pública, além de esconder que o mercado financeiro está alavancado, pagando 20% ao ano ou mais, e que o rentismo virou um modo de vida para 1%, ou no máximo 10%, dos brasileiros e brasileiras, expropriando e se apropriando da renda nacional, principalmente da classe média e dos trabalhadores.
O segundo objetivo é 2026: eleger um presidente com a agenda do agronegócio e dos rentistas, um Brasil privatizado, sem a Petrobras e os bancos públicos, sem vinculação do salário mínimo com a previdência que defendem privatizar, sem um piso de gastos para a saúde e educação, que nos Estados já privatizam no máximo, mantendo a tendência atual de transformar o Brasil num país exportador de alimentos e energia, uma primarização de nossa economia, uma regressão para o século XIX.
Não aceitam enfrentar o déficit público com uma reforma tributária e financeira. Pelo lado da arrecadação, como afirmaram, nada de isenção de imposto de renda para quem ganha R$ 5 mil, com redução até R$ 7 mil; nada de cobrar impostos do estoque de riqueza e da renda, de lucros e dividendos; e nada de pôr fim ao descaminho de uma taxa Selic de 14,75%, que custa 8% do PIB e juros de longa duração, como diz – (ele deve ter uma bola de cristal) – o presidente do BC.
O editorial da Folha que acusa o governo de responsável pelo fato de o rentismo receber R$ 1 trilhão de juros do serviço da dívida, o grito de guerra do presidente da Câmara contra a gastança dos servidores públicos e a declaração do controlador do BTG, André Esteves, para quem “gasto excessivo é morte”, como que respondendo ao presidente Lula, que disse que gasto é vida, e por fim um dos empresários participantes atribuiu ao Bolsa Família e programas sociais a falta de mão de obra no país, numa visão simplista sobre essa realidade que ele bem descreveu. Falou-se inclusive que não se pode aumentar a receita.
O fato real da ausência de mão de obra não pode desconsiderar os baixos salários e o regime de trabalho de 6X1 e a recusa de grande parte da juventude de aceitar trabalhar em funções repetitivas ou cansativas, precarizadas ou sem segurança social, quando tem a opção do trabalho autônomo ou empreender. Também não se pode desconsiderar a urgente necessidade de revolucionar o ensino médio no país, apesar dos esforços do governo federal com as políticas do Pé de Meia e do Ensino Médio Integral, e de vários Estados, com as escolas técnicas, mudanças no ensino médio e os institutos técnicos federais, e mesmo do Senai e congêneres e das próprias empresas. Salta à vista que os programas sociais permitem que as famílias e seus membros, saindo da miséria e da fome, ingressem no mercado de trabalho e não ao contrário, como pode sugerir a fala citada.
De fato, hoje 12 das 27 unidades da Federação – inclusive todas das regiões Norte e Nordeste – têm número maior de beneficiários do Bolsa Família do que de trabalhadores com carteira assinada, segundo dados do Caged divulgados no fim de maio. Mas o cenário é de reversão: o número de carteiras assinadas cresce em relação aos beneficiários desde janeiro de 2023, quando Lula reassumiu a Presidência. Cerca de 4 milhões de vagas formais foram criadas desde então. No mesmo período, 1,1 milhão de beneficiários deixaram o Bolsa Família.
O desafio é governo e empresariado buscarem a porta de saída dos programas sociais via uma transição no tempo e na formação profissional, como já propam várias entidades e especialistas.
Creio ser altamente positivo que os empresários coloquem lá e aqui suas propostas e articulem para aprová-las. Cabe a nós traduzir em alto e bom som o que está por trás de suas propostas: a manutenção do atual estado de coisas sem solucionar, como vimos no ado, a concentração de renda e o iníquo sistema tributário regressivo que temos, com risco de o Brasil perder a janela de oportunidade que se abre no mundo.
(*) José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo.
