Crimes do Araguaia: 45 anos do assassinato de Gringo
Sindicalista paraense Raimundo Ferreira Lima se tornou ícone da luta dos trabalhadores rurais durante a ditadura militar
Há 45 anos, em 29 de maio de 1980, o sindicalista paraense Raimundo Ferreira Lima era sequestrado, torturado e assassinado por pistoleiros.
Conhecido como “Gringo”, Raimundo era um dos mais destacados agentes da Comissão Pastoral da Terra na Região Norte do Brasil. Ele se tornou um ícone da luta dos trabalhadores rurais durante a ditadura militar e desafiou o domínio dos latifundiários sobre as organizações sindicais camponesas.
Perseguido por seus vínculos com os combatentes da Guerrilha do Araguaia e por seu trabalho na organização dos posseiros, Gringo foi preso inúmeras vezes. Sua viúva, Maria Oneide, deu continuidade ao trabalho do marido após sua morte e também foi perseguida pelo regime.
Quem era Raimundo Ferreira Lima
Raimundo Ferreira Lima nasceu em Marabá, no sudeste do Pará, em 22 de julho de 1937. Era filho de Raimunda e Manoel Ferreira Lima, um casal de trabalhadores rurais oriundos do Maranhão. Pequeno e franzino, Raimundo recebeu a alcunha de “Grilo” na infância. Depois, por corruptela, o apelido mudou para “Gringo”.
A pobreza da família e a morte precoce do pai obrigaram Gringo a trabalhar desde cedo. Aos nove anos, ele já carregava baldes de água do Rio Itacaiúnas até os bordéis da cidade. Com 14 anos, decidiu se aventurar no garimpo, trabalhando em uma cava de cristais nos arredores do Rio Tocantins.
Gringo também trabalhou como sapateiro e serviu como assistente de um técnico veterinário. Posteriormente, conseguiu emprego como fiscal de empréstimos do Banco do Brasil, sendo incumbido de supervisionar o uso do crédito subsidiado nas fazendas da região.
O trabalho de fiscal levou Gringo até a vila de Itaipavas, então um distrito de Conceição do Araguaia (atualmente integrado ao município de Piçarra), onde ele conheceu a estudante Maria Oneide Costa Lima. Os dois iniciaram um relacionamento e se casaram em outubro de 1967. Constituíram uma família numerosa, com seis filhos.
Após o casamento, Gringo arrumou emprego como de uma grande fazenda que pertencia a Luso Solino. A experiência seria breve. Quando seu patrão o incumbiu de expulsar famílias humildes que tinham se instalado em uma parte da fazenda, Gringo se recusou. Empático ao sofrimento dos posseiros, ele preferiu perder o emprego a obedecer à ordem do patrão.
A Guerrilha do Araguaia
Gringo nunca se arrependeu da decisão. A sensibilidade social e a solidariedade de classe eram valores que ele cultivaria com afinco — sobretudo após seu retorno a Itaipavas, quando ou a trabalhar com o sogro na construção de embarcações.
Itaipavas está localizada próxima à região do “Bico do Papagaio”, que serviu de abrigo a um dos mais combativos movimentos de resistência à ditadura militar brasileira — a Guerrilha do Araguaia. Desde meados dos anos 60, militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) se dirigiam para essa área a fim de iniciar um movimento de insurgência contra o regime.
Gringo conviveu com alguns dos guerrilheiros do PCdoB, incluindo Osvaldão — um dos principais comandantes da guerrilha. Carismático, Osvaldão criou muitos vínculos com a comunidade local, tornando-se uma figura respeitada e querida pelos ribeirinhos e camponeses.
Os guerrilheiros prestavam favores e serviços aos moradores locais. Alfabetizavam, conseguiam ajuda médica, doavam remédios e alimentos para as famílias carentes etc. A interação também se dava no campo das discussões políticas e deixou um impacto profundo na conscientização dos trabalhadores rurais da região.
A Comissão Pastoral da Terra
Gringo também se aproximaria das correntes progressistas da Igreja Católica. Entre o fim dos anos 60 e o início dos anos 70, ele viveria com sua família em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Na cidade, Gringo foi vizinho do bispo Pedro Casaldáliga, de quem se tornou muito próximo.
Casaldáliga era um dos maiores expoentes da Teologia da Libertação e um dos mais aguerridos críticos da ditadura militar. Ele também foi fundador da Comissão Pastoral da Terra (T), um movimento religioso que apoiava a luta dos trabalhadores rurais e a mobilização da sociedade em prol da reforma agrária.
As pregações e o trabalho social de Casaldáliga e das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) despertaram a iração de Gringo e o inspiraram à ação. Ele acompanhou o surgimento da T e se voluntariou a ser um agente pastoral.
Gringo se engajou na organização política das comunidades rurais do Araguaia, conscientizando os camponeses sobre seus direitos, exortando-os a se unirem à luta pela terra e denunciando a violência cometida pelos grandes fazendeiros.
Após seu retorno ao Pará, Gringo se converteria em uma das principais lideranças da T na região do Bico do Papagaio. Ele percorria vilarejos e fazendas, organizava reuniões, formava grupos de base e participava ativamente das ocupações. Sua habilidade de comunicação e a disposição em ajudar os camponeses fizeram com que ele fosse visto como uma liderança genuína da categoria.
Os conflitos no Araguaia
A atuação de Gringo se dava em um contexto turbulento, em uma região marcada por conflitos fundiários intensos. A ditadura militar havia incentivado a expansão da fronteira agrícola sob um modelo que privilegiava a formação de latifúndios e grandes projetos empresariais, avançando sobre os territórios indígenas e marginalizando os pequenos agricultores e os posseiros.
Após o início das operações de extermínio da Guerrilha do Araguaia, os camponeses, que já enfrentavam a violência dos latifundiários, também aram ser perseguidos pelos militares. Os trabalhadores rurais politicamente organizados foram violentamente reprimidos, forçados a abandonar suas propriedades e submetidos a prisões, torturas e assassinatos.

Rogério Almeida / Canal FURO
Gringo tornou-se um alvo das autoridades e dos latifundiários, tanto por seu trabalho incentivando a luta camponesa na Pastoral da Terra quanto por seus vínculos com os membros da Guerrilha do Araguaia. Ele foi preso diversas vezes por convocar reuniões ou ajudar nas ocupações dos posseiros.
Boatos afirmando que Gringo era ligado aos “terroristas” e “comunistas” começaram a ser difundidos pela região. Ele era acusado falsamente de armazenar armas em sua casa, distribuir textos “subversivos” e incitar os camponeses à luta armada.
Em 1978, a casa de Gringo foi invadida por dez policiais militares, que ameaçaram sua esposa, tentando forçá-la a revelar seu paradeiro. Gringo escapou de ao menos três tentativas de assassinato e era constantemente ameaçado de morte por pistoleiros e jagunços.
Em uma ocasião, ele chegou a alertar a sua esposa que ela deveria estar preparada: “Olha, tu te prepara, porque qualquer hora tu recebe a notícia que eu morri. Porque na luta em que estou, pelo povo, a qualquer hora me matam por aí”.
A disputa sindical
As ameaças não intimidaram o líder camponês. Ele não apenas prosseguiu organizando a luta dos trabalhadores rurais como deu início a uma nova frente de batalha, contestando a estrutura sindical subserviente à ditadura e aos interesses dos latifundiários.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Conceição do Araguaia era uma das associações camponesas mais importantes do país. Os trabalhadores rurais, no entanto, não se viam representados pelo órgão. O presidente do sindicato, Bertoldo Siqueira de Lira, era um ex-militar que ignorava completamente as reivindicações dos camponeses e vivia cercado pelos fazendeiros.
A fim de contornar a inércia do sindicato pelego, Gringo e os trabalhadores rurais começaram a criar uma rede de delegacias sindicais autônomas, geridas por representantes legítimos dos camponeses. Gringo também decidiu que se lançaria como candidato à presidência do SRT na eleição de 1980.
O líder camponês chegou a ser eleito, mas o pleito foi anulado sob o argumento de “falta de quórum”. Uma outra eleição foi então convocada para o mês de junho, dessa vez organizada por Sebastião de Moura Rodrigues, o “Major Curió”, o comandante da repressão à Guerrilha do Araguaia, que pressionou os camponeses a votarem no candidato do regime.
Embora contasse com apoio dos trabalhadores rurais, Gringo estava ciente de que precisaria de mais recursos e apoios para vencer a disputa contra a máquina do governo. Assim, em maio de 1980, ele viajou até São Paulo para participar de um encontro de operários e tentar obter fundos para sua campanha.
À época, a capital paulista era o epicentro do Novo Sindicalismo — o movimento político que reivindicava a autonomia das organizações operárias e contestava a tutela do regime sobre os sindicatos. Gringo conseguiu angariar 17 mil cruzeiros durante a reunião. Logo em seguida, iniciou o retorno para Conceição do Araguaia.
O assassinato de Gringo
Gringo jamais concluiu a viagem. Na manhã do dia 29 de maio, após pernoitar em um hotel na cidade de Araguaína, ele foi sequestrado por pistoleiros. Levado a um local isolado, Gringo foi torturado e executado com tiros na cabeça e nas costas.
Seu corpo apresentava sinais de violência brutal, incluindo um braço fraturado e vários ferimentos na cabeça. Os 17 mil cruzeiros que havia coletado em São Paulo para a campanha ainda estavam em seu bolso — um sinal evidente de que sua execução não era um crime comum.
O assassinato de Gringo causou enorme comoção. Mais de 4.000 pessoas vieram dos vilarejos da região Araguaia para acompanhar seu funeral. O cortejo fúnebre foi convertido em um ato de protesto. Manifestações posteriores chegaram a reunir mais de 10 mil pessoas.
Um agricultor, em um discurso emocionado, expressou o sentimento coletivo: “Sinto muita tristeza de ver o Brasil em uma ditadura. O prazer desse pessoal é manter todo mundo analfabeto, para ninguém saber defender seus direitos. Mas todo analfabeto também sente o sangue derramado, todo analfabeto também é brasileiro”.
A morte do líder camponês fora anunciada com antecedência. Na véspera do assassinato, o padre Ricardo Rezende, ligado à T, havia denunciado em Brasília a existência de uma lista com os nomes de seis líderes rurais do Pará, todos jurados de morte por fazendeiros da região. Gringo era um dos nomes da lista.
Os suspeitos do crime
As suspeitas recaíram imediatamente sobre José Antonio. Ele era capataz do fazendeiro Fernando Leitão Diniz, que havia sido morto recentemente durante um conflito com posseiros. Os familiares de Diniz culpavam Gringo pela morte do fazendeiro, alegando que era o sindicalista quem incitava a revolta dos camponeses.
Embora as ameaças contra Gringo fossem de conhecimento geral, os policiais não fizeram sequer registro da ocorrência. Também não foi aberto inquérito para apurar o assassinato. Com o pretexto da “falta de documentos”, as autoridades tentaram sepultar o sindicalista como indigente, mas foram impedidas pela mobilização da comunidade.
Maria Oneide, a viúva de Gringo, teve de criar sozinha os seis filhos do casal e deu continuidade à luta do marido, tornando-se uma militante da causa camponesa e da reforma agrária. Ela foi presa pela ditadura militar em 1982, acusada de ser “subversão e terrorismo”. Também sofreu ameaças de morte proferidas por Neif Murad — outro latifundiário suspeito de envolvimento no assassinato de Gringo.
A Comissão da Anistia iniciou uma investigação sobre a morte de Gringo em 2005, revelando que os serviços de inteligência do Exército Brasileiro o monitoravam desde 1972.
Documentos da CIA publicados em 2018 confirmaram que o presidente Geisel autorizou assassinatos extrajudiciais de “subversivos perigosos” em 1974, levantando a suspeita de que a morte de Gringo teria sido parte de uma campanha de repressão estatal contra lideranças populares.
A despeito do assassinato de Gringo ter ocorrido após a da Lei da Anistia de 1979, sua família não recebeu indenizações do Estado. Eles lutam até hoje pela instituição de uma apuração formal do crime.
